segunda-feira, 9 de março de 2015

A cidade possível

Foto: Edyta Pawlowska / Shutterstock

Revista Bicicleta por Arturo Alcora, diretor presidente da UCB

sociedade brasileira está numa das mais profundas crises de sua história. Provavelmente nem nas guerras que participamos ou nos sangrentos levantes populares este país teve o banho de sangue que vivemos em nossos dias. Violência brutal, sem qualquer sentido, com números que não param de crescer e sem perspectiva de melhora. Mortes no trânsito, em latrocínios, assassinatos, assassinatos políticos pouco divulgados, mas em números também altos. Fora sequelados permanentes que somam-se ao exército de 17% da população (IBGE) de pessoas com deficiência física ou de mobilidade. Mas qual a razão para toda esta loucura? 
O crescimento desordenado, em todos os sentidos, principalmente o populacional e das cidades, pode ser tomado como uma das principais causas, mas não a única. O estímulo ao consumismo desenfreado, a necessidade de status social, individualismo, falta de educação... É um imenso caldeirão de mingau fervendo. Como qualquer mingau, para comer deve-se colocar em prato raso, soprar até que fique morno e ir comendo pelas bordas com uma colher pequena. Fica até mais saboroso. Socialmente seria “ir aparando as arestas”, a mesmíssima técnica usada dentro de famílias equilibradas. Não existe milagre, reza brava, fórmula mágica e outras falácias. É preciso muita paciência, compreensão, busca constante de entendimento, muito mais paciência, conversas e mais conversas, voz baixa, fala pausada, saber fazer-se entender claramente, sem dúvida, com tranquilidade, trabalho, sabedoria, bom senso. Cuidado extremo para nunca criar ressentimentos. É preparar o mingau com carinho, saber servi-lo numa mesa bem arrumada. Chamar os convivas e avisar que quem der uma colherada grande, for guloso, vai queimar a boca.
O paralelo da vida da cidade com a de uma família é mais do que válido, é real. Assim como vale fazer paralelos entre família, bairro, cidade, região metropolitana, estado, país, política internacional. O micro e o macro se misturam e são uma coisa só.
O ponto no Brasil atual não é mais como construir a cidade que queremos, com qualidade de vida. O ponto que chegamos é como fazemos para parar a guerra civil na qual estamos metidos. Ter mais de 25 mortes violentas por 100 mil habitantes, número oficial, pouco confiável e provavelmente mais baixo que a realidade, é guerra. O problema da violência ficou lá para trás, num passado distante. O que temos é guerra civil, conflito armado generalizado! Temos cidades com mais de 60 mortes por 100 mil, número digno de genocídio.
Comer pelas bordas... Trânsito é provavelmente o sistema de ordenamento social mais fácil e simples de ser entendido e praticado. O semáforo está verde, pode passar; está vermelho, fica parado. Até bandido respeita. Para ter paz no trânsito é necessário fazer cumprir as leis. Numa comparação com a família, o maior cuida do menor, a mãe cuida do bebê e quando ela não está cuida o pai, o filho mais velho ou a irmã. Há hierarquia e a autoridade é respeitada. Igualzinho à lei que dá prioridade ao pedestre. Simples. Diminuiu os problemas no trânsito, diminuiu muito as tensões sociais, melhorou o convívio de todos. Simples. Uma cidade com trânsito amigável é uma cidade boa de viver por que diminuem todas as violências, incluindo homicídios. Não precisa excluir ninguém, só precisa colocar limites sensatos. 
Vencer pelas bordas! No ciclismo de estrada, tipo Tour de France, Giro d’Italia, Vuelta a España, há regras, leis, autoridade para a organização, ciclistas e público. Por isto todo mundo gosta, acompanha e fica feliz. Cada equipe tem seu grupo de ciclistas e cada um deles tem uma função específica; todos trabalham (pedalando) para a vitória da equipe e de seus principais ciclistas. A maioria dos ciclistas é gregária, ou seja, pedala para ajudar, sabendo de suas limitações. Mesmo entre as equipes há princípios, um conjunto de etiquetas não escritas em papel, que são respeitadas. Há jogo (acordo informal) entre equipes e ciclistas em busca de um resultado maior. Manda a inteligência do ciclismo não apontar o dedo na cara de ninguém, principalmente do mais forte, como fazem alguns ativistas com o automóvel. Ele é o mais forte hoje, coisa do momento histórico. O setor da indústria automobilística, que de burro não tem nada, não fica ridicularizando a bicicleta por que sabe da força e importância dos pedais. Muito pelo contrário, o setor automobilístico vem estimulando mobilidades diferentes das motorizadas. 
“Ao socialismo se vai em bicicleta” é uma expressão que surgiu nos primórdios dos movimentos sociais da Inglaterra e Alemanha porque os clubes de ciclistas de então, final do século XIX, ajudaram nas batalhas de várias causas sociais. Hoje ainda se usa este provérbio porque se tem certeza de que a bicicleta realmente tem uma capacidade de transformação do indivíduo, da sociedade, do meio ambiente e das cidades. Bicicleta é do bem, faz bem. A prova disto está no índice dos países com melhor IDH: quanto mais bicicletas e ciclistas, mais rico é o país, mais socializada é a riqueza, melhor o IDH, assim como Dinamarca, Noruega, Suécia, Holanda e outros.
“Bicicleta é coisa de pobre” é uma frase historicamente repetida no Brasil. Justamente aqui onde o veículo mais usado sempre foi a bicicleta. Frase repetida por todas as linhas políticas, incluindo as esquerdas. Prova disto é o IPI zero, nossas cidades entulhadas de automóveis, trânsito infernal com consequente aumento de todo tipo de violência, desintegração de nossas cidades, de nossas casas, de nossas vidas. Mesmo sendo “coisa de pobre” a bicicleta não foi incluída no Brasil de todos como um projeto de estabilização social. A trupe que comanda o país tinha outros objetivos. Olhem para trás, pesquisem em arquivo dos jornais e revistas, e verão que só a partir do momento que a bicicleta virou alternativa chuchu beleza para a classe média e ganhou os noticiários, é que começaram a surgir os arrivistas. 
Nós ciclistas temos um importante papel nesta busca pela paz, mas só vamos chegar a bom resultado se entendermos que o jogo do trânsito é coletivo. Bicicleta ainda é novidade nas regiões centrais das grandes e médias cidades, portanto tanto motoristas como os próprios ciclistas ainda não sabem bem como jogar sem se machucar. É básico aceitar esta verdade. Ou então podemos partir para os princípios revolucionários e sair chutando portas, quebrando espelhos, agredindo motoristas, xingando seguranças e autoridades, jogando a culpa nos outros... Mas, então, só estaremos aprofundando a guerra civil que estamos metidos.

À paz se vai em bicicleta. Amém!



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